quinta-feira, novembro 29, 2007

a SIDA é fodida

A SIDA é fodida.
Mas ninguém quer saber porque a sociedade pensa que a SIDA é uma doença de putas, drogados e paneleiros. E quem sou eu para mandar palpites sobre o que eu acho que a sociedade pensa? João, muito prazer.

A SIDA é fodida, já disse. Já a luta contra a SIDA, nem por isso. É, sejamos simpáticos, fraquinha. Frouxa, torpe e, na maioria das vezes, pueril e ineficaz. A luta contra a SIDA em Portugal tem sido - e digo-o muita a sério - uma brincadeira.

A maioria das campanhas do suposto combate à SIDA pode ser englobada em dois tipos: aquelas que têm baixíssimos níveis de visibilidade e aquelas cujo nível de eficácia na transmissão da mensagem vai pouco além do risível. E ora vão alternando, ora acumulam ambas as qualidades.

Sei que já lá vão uns anos, e que os tempos eram outros, e que não se podia dizer tudo o que se queria nem como se queria. Mas uma das primeiras campanhas de que me lembro, da Abraço creio, constava de um desenho colorido com um jovem (ou seria um casal?) “a voar” em cima de um preservativo, com um fundo azul, a Lua e estrelas amarelas. Ora, o impacto teria sido muito maior se os utilizadores de preservativo tivessem idades compreendidas entre os 3 e os 11 anos. Entretanto mudámos de século mas as imagens continuam com um grau de impacto comparável, como podemos verificar no histórico de campanhas da Abraço.

Aos olhos da sociedade (que desde o início do texto continua a pensar que a SIDA é uma doença de putas, drogados e paneleiros), a Abraço tornou-se mais um símbolo do que uma prática constante e eficaz de prevenção. A Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA em 2004 traçou um plano nacional, em que a teoria prevalece de sobremaneira sobre a prática. Nesse plano, traça metas para 2006 (ainda temos tempo, portanto) no âmbito da prevenção e acesso a tratamento de infecções com VIH/SIDA que, ou pecam por excesso de optimismo, ou são demasiado genéricos, ou alguém deixou o trabalho a meio.

Se nos campos da detecção e do acesso a tratamento se registaram resultados motivadores, em termos de divulgação da mensagem (o alvo deste texto), parece-me que não estamos muito longe de quase na mesma. O actual instrumento governamental na área – a Coordenação Nacional para a infecção VIH/SIDA, é igualmente contido nessa área.

A mensagem a passar, convenhamos, não é muito difícil de compreender. Basicamente: a SIDA é má, o preservativo é bom. E se o conteúdo se revela bastante simples o problema está, claramente, na forma como é apresentado. A Abraço existe “porque a SIDA existe”. Usa preservativo, é a tónica dos slogans ao longo dos anos. Protege-te, faz o teste. E não se passa muito destas cândidas palavras.

O ritmo a que as diferentes campanhas vão pingando também não ajuda muito ao estabelecimento de uma convicção na mente da população-alvo. Ou é nos dias 1s de Dezembro, ou nos dias do peditório nacional da Abraço que se fazem mais notar. Uma campanha mais eficaz teria que passar forçosamente por uma massiva e explícita intervenção de vários agentes (governamentais, figuras públicas, pessoas infectadas), envolvendo todos os meios de comunicação e dar assim uma valente marretada nas ignorâncias, tabus, preconceitos e discriminações associadas.

O tom, esse, agressivo. Com conversa de meninos está provado que não vamos lá. É certo que o facto de haver mais infectados pode querer (e parece-me claro que quer) dizer que há muito mais gente a fazer o teste. Não obstante, revela uma certa parte de fracasso nas políticas e nas campanhas levadas a cabo. A recente notícia de que Portugal é um dos países em que o número de novos infectados por transmissão mais aumenta prova-o inequivocamente. O mais recente relatório do Centro de Vigilância para a infecção VIH/SIDA (se não for o mais recente, let me know) data de Junho de 2007 e os dados vão confirmando a tendência de evolução dos últimos anos.

E o aumento da transmissão é sintomático da contínua prática de comportamentos de risco. E porque é que isto acontece? Entre outras coisas porque as campanhas são o que são. Quase sempre, uma merda. Doce, é certo. Mas uma merda.

Como faria eu uma campanha? Começava pelos slogans. Seriam rudes, sem meios palavreados inúteis. Claros, mas duros e precisos. Rudes e vis. Ou algo do género:

Preservativos: são do caralho!
(e além de o serem - literalmente - isto era dito pelos Gato Fedorento e estava garantido o sucesso)

- Usa preservativo, caralho.

(Uma miúda com cara de má a apontar para o preservativo):
- Põe-te no caralho!

Fode mas não te fodas!

(Imagem do preservativo)
Manda-o foder!

(Ou mais light)
Whisky antes, cigarro depois. Preservativo durante.

(Multidão a manifestar-se na Av. da Liberdade)
Preservativo sempre! SIDA nunca mais!




E/ou outros da mesma estirpe. Acho que perceberam a idéia. Mas duvido que a sociedade (que vai continuar a pensar o mesmo) o permita. Podemos ter avisos inofensivos e inúteis ou imagens chocantes e hipócritas nos maços de tabaco, mas sexo explícito e palavrões na publicidade é que nunca.

E uma campanha deste género chocava a sociedade? Não tenho dúvidas que sim. E dava bastante mais visibilidade à prevenção da infecção pelo VIH/SIDA? Pois dava. E descredibilizava a Luta Contra a SIDA em Portugal? Claro. Mas se há coisa de que a a Luta Contra a SIDA em Portugal precisa neste momento é de ser descredibilizada. É a primeira a ter que mudar se quer que as mentalidades da sociedade se transformem. Em termos individuais não duvido do esforço tremendamente louvável de inúmeros agentes, profissionais e não só, na Luta contra a SIDA, mas em termos colectivos, meus amigos, andamos a brincar às prevenções.



Só que eu posso dizer asneiras à vontade (excepto no jantar de Natal), mas a sociedade não, embora não cesse de as ir fazendo. Pelo que duvido que uma campanha deste género - ou doutro, meu deus, desde que seja boa e eficaz! - venha a surgir este ano ou esteja para breve em Portugal.



E assim estamos e assim nos vamos ficando. Porque a SIDA existe, é certo, mas como toda a gente sabe é uma doença de putas, drogados e paneleiros.

12 Comments:

Anónimo said...

Nem sei por onde começar...
Mas, primeiro, tenho que dizer que gostei muito do texto e que, de uma forma muito "especial", faz bastante sentido!
Há vários problemas relacionados com a Luta Contra a SIDA em Portugal. O primeiro será talvez o facto destas campanhas não serem consistentes e surgirem apenas por volta do 1 de Dezembro. Depois sabemos que é um tema que assusta e que as pessoas preferem virar a cara ao assunto... Assim se perpetua a ideia de que é um problema dos outros: "putas, drogados e paneleiros"...
Estou convicta que Portugal só vai abandonar o primeiro lugar da desgraça quando TODOS participarem e forem proibidas publicidades como as da Igreja Maná, que afirma curar pessoas com VIH...
Entretanto, temos que continuar a tentar... se de cada vez que uma campanha sair para a rua, conseguir fazer eco na cabeça de meia dúzia de pessoas, não acho que tenha sido um fracasso... Claro que vamos querer sempre mais...
TODOS somos responsáveis...
TODOS temos de participar... MESMO!

Anónimo said...

Sinto que vivo num país de mentalidade católica, onde os problemas são embalados em hipocrisia. Nomeadamente o da SIDA.
Há duas posições (generalizando). A primeira: os que têm SIDA são uns miseráveis e se a têm é porque fizeram por o merecer. A segunda surge quando é moda ser solidário, os portadores do vírus são uns coitadinhos, uns incapacitados, pobrezinhos.
Como é que se aborda um assunto destes com pessoas que se colocam em pedestais de ignorância? Com pessoas a quem se fala em "pénis", "preservativo" e se riem como crianças? Não faço a mínima ideia, nem sei como posso "participar". Tanta gente levanta o problema, mas tão poucas dão soluções. E contra mim falo.

Anónimo said...

r,
só não concordo com a parte do TODOS temos que participar.
claro que o ideal seria que todos tivessem(os) consciência (auto-consciência e cosnciência social).
mas dessa utopia já não partilho.
a questão é que o Estado tem o dever de fazer com que os cidadãos estejam TODOS informados, ou pelo menos esforçar-se muito para tal. esse parece-me um mínimo essencial para o arranque de futuras consciencializações sobre o tema.

e este mínimo indispensável, parece-me, ainda está muito longe de ser cumprido.

quanto ao termos todos de participar, a conversa é outra. temos é que estar todos informados. depois, que cada um decida o que quer fazer. eu tenho o direito de me estar a borrifar para alertar quem quer que seja para os riscos da transmissão do vih, se assim o quiser. o problema é que o Estado não se pode borrifar para isso. informar os cidadãos dos riscos de vih/sida (entre outras doenças, mas fiquemo-nos por aqui) parece-me um cuidado básico de saúde, que deve ser assegurado por um Estado de direito, e o esforço para que a mensagem chegue a toda a gente deve ser equivalente à obrigatoriedade de garantir a Educação em matemática ou língua portuguesa, por exemplo.

focando-me outra vez. eu não digo que tenhamos todos que participar. mas quem faz as campanhas é pago pelo Estado para isso e tem a obrigação moral de as fazer como deve ser, e não mostrar mil e uma charopadas idiotas que não produzem resultados nenhuns.


[e acredito perfeitamente que a igreja maná cure pessoas com vih. cura-lhes a tosse com uma mebocaína ou uma unha encravada.
piada à parte, isso levava-nos para a igreja, e para o preservativo, e para hipocrisias e pseudomoralismos demasiado batidos e não me apetece. mas onde está sociedade, a igreja está - infelizmente - lá inserida.]

nuno said...

a sida não entra só pelo cu.

gosto deste slogan.



uma vez ouvi uma senhora a dizer o seguinte, "se a SIDA é um castigo de deus à homossexualidade, pq raio é que ele poupou as lésbicas?". gostei da ideia, pq implica um deus falível e isso levanta algumas questões interessantes mas adiante.

em são francisco, terra dessa senhora, encontraram uma boa maneira de sensibilizar as pessoas. num só bairro morreram quase mil pessoas num ano. ora, usando a cena dos seis graus, TODA a gente da cidade conhecia alguém que tinha morrido. e isso mete medo. e a sida mete medo.

mas sabes qual é a única coisa boa da sida? paga a água que uso no laboratório. a sério.

Anónimo said...

humming, lá está. o embrulho católico dos falsos moralismos e hipocrisias vai sendo castrador muitas vezes do mais básico acesso à informação.

quanto à "tua" primeira posição, a convicção enraízada de que nem todos estamos sujeitos à infecção é uma das grandes, grandes questões base de toda a problemática. e daí vem justamente esse sentimento de que as pessoas com sida fizeram por merecê-lo. não fossem putas, drogados ou paneleiros. quem os mandou?


quanto às modas de ser solidário, essas solidariedadezinhas na maior parte das vezes fúteis e bacocas, enojam-me. a começar pelo peditório nacional da abraço. o termo peditório só por si dá logo os primeiros acordes para que se cante o fado do desgraçadinho.

imagino que a última coisa que alguém infectado com vih precisa é que os outros encontrem nele uma desgraça. a luta neste campo deve ser pela não-discriminação, mas não se pauta só pela mensagem "não discrimes" (que é óptima, atenção), mas é necessário que os instrumentos legais e políticos funcionem e condenem sem excepção todos e quaiquer actos discriminatórios. essa é uma das batalhas.

outra diferente é a da prevenção, em que a mensagem (e escrevi-o bastante convicto) deve ser passada de uma forma tão "dura" e frontal quanto possível. não faço idéia se funcionaria, mas a parcimónia com que a prevenção tem vindo a ser feita está visto que não.

Anónimo said...

"a sida não entra só pelo cu"

exacto. clap, clap.

Anónimo said...

Concordo com quase tudo do que foi escrito... mas reitero que TODOS temos de participar!
Não me parece que possamos responsabilizar o Estado por tudo o que está de errado no país... A verdade é que há bastante dinheiro disponibilizado para a problemática: os testes de rastreio são gratuitos, a medicação de um seropositivo também, há boas leis de protecção dos direitos das pessoas infectadas (mesmo que a sua aplicação quase nunca seja bem sucedida... e aí sim, tem o Estado de intervir!), há vários projectos financiados para a prevenção (se bem que se limitem aos famosos grupos de risco... que já não são reais...) e há pessoas dedicadas (e sim, por mim falo, mas conheço muitos outros!).
O grande problema está em modificar as CRENÇAS das pessoas! E por muito queiramos, educar leva tempo... que é caro em vidas... E
é neste aspecto, que o Estado não pode chegar! Nem nunca conseguirá chegar!!
Repito, temos de ser TODOS! A não discriminar, a tentar conhecer, a conversar sobre o tema com naturalidade, a quebrar o tabu... a desmistificar!
Falar de SIDA acaba por ser como falar de sexualidade... e todos sabemos que não é um tema "bem tratado"...

Anónimo said...

A última "propaganda" sobre a SIDA em Portugal foi o caso daquele cozinheiro, que foi despedido por ser VIH positivo... Enfim... São estas coisas que ficam na cabeça das pessoas. (Foi só um aparte.)

cs said...

a coordenação destas coisas existe só pelos poleiros que dá. Acham que alguém coordena a luta contra a sida, ou a luta contra a droga ou a luta contra o que vier a seguir sem esperar um dia chegar a ministro? Alguém está lá por mérito? E que tipo de mérito?
E porquê aquelas pessoas?

Mérito tem a senhora do Banco Alimentar..que n é paga pelo Estado, porque se aquilo fosse uma comissão contra a fome não seria ela que lá estaria mas outro qualquer a ganhar uma pipa de massa e como trampolim para um lugar de Ministro. E o Banco Alimentar cada ano levava mais dinheiro aos contribuintes

Uma vergonha.. e sim.. campanhas a dizer que a Sida é uma coisa "NÃO SÓ FODIDA MAS QUE FODE A VIDA", isso acredito que tivesse impacto mas não é socialmente correcto. País Fodido este.
E por agora me calo...

João Gaspar said...

cs,

cuidadinho com linguagem, fáxavor! ;)


totalmente de acordo e nada a acrescentar. partindo do princípio que as interrogações, infelizmente, são todas retóricas.

AEnima said...

Tens toda a razão em criticar uma série de "organizações" de luta contra a sida. Quem está por dentro, aponta-lhes defeitos bem mais podres dos que apresentas.

Conheci recentemente a Positivo, que, entre outras coisas, tem um projecto muito interessante com as prostitutas e prostitutos do cais de sodré e é um grupo de auto-ajuda a pessoas infectadas com o vírus. Acho que trabalham bem, com os valores certos, no local certo. Pena os lobbies e os aproveitadores externor terem deitado por terra planos de expansão. Se estás interessado, atenta a essa associação, que vale a pena.

Fica bem

O Grupo said...

Fiquei sem palavras depois de ler o teu texto. Acho que é dessa maneira crua e fria que se consegue dar a entender que chega de mariquices, isso tem que ser feito já!

Passa pelo meu blog www.grupodeap12a.blogspot.com estou a fazer um trabalho de área projecto sobre problemas da adolescência e esse tema está lá presente.

Cumprimentos